domingo, 26 de abril de 2009

O Tempo das Crônicas


Na semana que passou, ocupei este espaço com a publicação de uma crônica escrita por Machado de Assis, em julho de 1883. Minha surpresa foi o número de e-mails que recebi de leitores querendo saber na realidade o que é uma crônica. O que é uma crônica? Bem, vou responder a esses leitores com um trabalho de Paulo Vicente Bloise, ex-cronista do Jornal da Tarde e autor dos livros: O Tão e a Psicologia, de olho na rua e Surfando na Marquise.
Acho que foi uma espécie de provocação amistosa. Quando minha amiga soube que eu estava escrevendo crônicas, ela disparou por telefone mesmo: “Sabe o que disse um escritor, com quem eu mantenho contato, sobre as crônicas?”.
Fiquei em silêncio, pressentindo as críticas que viriam.
“Ele acredita que são ficções malfeitas. Um tipo de conto preguiçoso, ou uma história de pouco fôlego”.
Fiquei contente. Há tempos que eu desejava escrever sobre o tema, e o desafio me incentivou. De início, concordei com o “pouco fôlego”. Sempre comparo esse gênero literário à fotografia, técnica que se propõe a registrar instantâneos. As crônicas, via de regra, não se metem a grandes narrativas, como um longa-metragem. Isso fica para os romances ou aos seus irmãos menores, as novelas. Olha-se uma situação, escuta-se um caso, recorda-se um episódio, e eis o material para a reflexão. Tudo, literalmente, funciona como assunto. Serve o trânsito? Serve. A impunidade dos ministros, os campeonatos esportivos? Servem também. Quem não leu ainda À sombra das chuteiras imortais, de Nelson Rodrigues, está perdendo uma ótima análise da paixão dos brasileiros pelo futebol.
Coisa curiosa: tanto faz se o fato principal, o foco de interesse, ocorreu no Afeganistão ou na casa do vizinho. Nesse sentido, o nascimento da crônica, artigo escrito por Machado de Assis em 1877, é memorável. Nele, o mestre destaca que a maneira certa de começar uma crônica é por uma trivialidade.
Mas quem teria inventado esse gênero literário, e quando isso teria ocorrido? Machado ironiza: foi no exato momento em que apareceram as primeiras vizinhanças. Elas se sentaram à calçada no final do dia e, provavelmente, disseram: ”Que calor! Que desenfreado calor!” Então, do clima, a conversa foi para as plantações e aos demais acontecimentos que as circundavam.
Volto para a provocação da mina amiga e pergunto: será que a crônica é realmente um gênero menor? Como um advogado de defesa, fui pesquisar e destaco os trechos mais importantes que encontrei sobre o assunto.
No Dicionário Aurélio deparei com várias definições para crônica. Em resumo, ela é considerada de um texto jornalístico escrito de forma livre e pessoal, cujos temas são idéias, fatos da atualidade ou do cotidiano. Foi justamente o caráter jornalístico que me chamou a atenção e lembrou-me um livro excelente sobre a história da imprensa, escrito por Jacques Wolgensinger.
Segundo o autor, a imprensa teria surgido para atender à necessidade que o ser humano tem de informar-se sobre o mundo que o cerca. Porém, as notícias, além de orientar as pessoas, deveriam oferecer algo mais: “o prazer de descobrir”.
Nutrindo a minha obsessão de advogado, palpito que a crônica – sendo “livre e pessoal” – pode explorar mais esse prazer do que o texto jornalístico, limitado à informação. Jacques considera os poetas gregos e os trovadores da Idade Média ancestrais do jornalismo moderno. E (por que não?) excelentes cronistas, já que em seus cantos eles informavam para o povo fatos míticos mesclados ao cotidiano. Bem, devo confessar uma coisa: quanto mais mergulhava na história da imprensa, mais maravilhado eu ficava. Quem imaginaria que o primeiro jornal do Ocidente, o Acta Diurna romano, já se utilizava das crônicas? E o que pensar do Commentarius Rerum Novarum, que à época de Júlio César conseguia ser semanal? Detalhe: eram feitos dez mil exemplares, escritos à mão por escravos.
Pulo, por uma questão de espaço, centenas de anos e encontro mais um elemento para defesa da crônica. Estamos no século XIX, as publicações são diárias, a distribuição é ampla, notícias voam sobre os continentes. Inicia-se o império dos grandes jornais com a árdua tarefa de conquistar leitores. A necessidade furiosa de vender jornais acirrou a competição entre os impressos. O francês La Presse, em 1836, dá um golpe fatídico, corta seu preço pela metade e duplica suas vendas. A concorrência, percebendo o seu sucesso, logo o imita. Girardin, o gênio do La Presse, não se abate e apela à qualidade, convocando os grandes escritores da época. Mas para que? Para escreverem crônicas!
Sim, e eu considero este meu argumento final: o que dizer de Balzac, Victor Hugo, Alexandre Dumas escrevendo essas “ficções malfeitas”? Pois foi isso o que ocorreu. A cada dia, uma crônica diferente aparecia na primeira página para estimular os leitores a lerem o resto do jornal.
Felizmente, essa competição entre os gigantes do jornalismo se manteve. Trouxe frutos, deu exemplos para que outros países os imitassem. Graças a ela, nossos melhores escritores, cujos textos podemos encontrar em coletâneas, retrataram suas épocas e costumes. A palavra “crônica” está ligada ao tempo (do grego chrónos, tempo) e ela funciona como um registro do presente. Basta procurar nos jornais de hoje. Os grandes cronistas passam por lá.

(São Paulo, 2002).

Wagner Gomes
wagnergomesadvocacia@uol.com.br
wg_ed.wagneradv@hotmail.com

sábado, 18 de abril de 2009

Passageiros da Agonia


Peço atenção aos meus caros leitores, para uma crônica escrita por Machado de Assis, no Rio de janeiro, em julho de 1883, onde traça algumas regras para os passageiros de bondes. Note-se que essas regras bem que poderiam ser adaptadas, hoje em dia, para os usuários de ônibus em Macapá.

“Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que freqüentam bonds. O desenvolvimento que tem sido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

Art. I – Dos encatarroados
Os encatarroados podem entrar nos bonds com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.
Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: – ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue.
Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio Bond, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc.

Art. II – Da posição das pernas
As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação.

Art. III – Da leitura dos jornais
Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro.

Art. IV – Dos quebra-queixos
É permitido uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: - a primeira quando não for ninguém no bond, a segunda ao descer.

Art. V – Dos amoladores
Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-se-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repelindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.

Art. VI – Dos perdigotos
Reserva-se o banco da frente à emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.

Art. VII – Das conversas
Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.

Art. VIII – Das pessoas com morrinha
As pessoas com morrinha podem participar dos bonds indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.

Art. IX – Da passagem às senhoras
Quando alguma senhora entrar o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.”

Wagner Gomes
wagnergomesadvocacia@uol.com.br
wg_ed.wagneradv@hotmail.com

quarta-feira, 15 de abril de 2009

“Feito...”


Feito cor, feito preto e branco...
A visão não confundiu o que enxergou...
A lembrança ainda é um presságio para o que aguardou...
E o tempo que esquecemos hoje, suportou...
Poderia ser diferente...
Feito a outra face da verdade...
Feito os olhos da coragem...
No descanso do desespero...
No sonho daquele momento...
No despertar assustado, achando que já era noite...
E no amor, ausente de si mesmo...
As forças dos sentimentos já foram mais sentimentais...
As forças dos desejos já foram mais desejadas...
Inspirações alcançam os limites...
E despejam minha carência manipulada...
Das carências que já ouvi...
Transformando minhas angústias capacitadas do que absorvi...
E o que eu me tornei depois daquela noite?
O que não poderei mais fingir?
As melodias foram apagadas entre as minhas...
E agora só resta sussurrar no silêncio...
E chamar por um nome...
E aguardar, ser o seu...
Por isso, não lembre mais do tempo que perdeu...
Não conte a ninguém o que lhe informei...
Minhas palavras e promessas são irreais...
E você se tornaria mentirosa entre minhas mentiras...
E eu não poderia mais expressar quem eu sou...
Pois o tempo me arrastou nessas confidências...
E o egoísmo me atrasou...
Feito dor, feito minhas incertezas...
Nesse impactante amor.

Marcos Gomes 14/04/2009.

PORQUE HOJE É SÁBADO


Sábado de Aleluia. Vitória da vida sobre a morte. Ressurreição de Cristo. Dia para ser comemorado. Nunca esquecido. Estamos em um bar na praia do Aturiá. Todos reunidos em homenagem a Jesus Cristo. Alegria total. E lá ouço a seguinte história. É sobre dois devedores: um fariseu convidou Jesus para jantar. Sabendo disso, uma mulher pecadora levou um vaso de alabastro com perfume e lavou os pés de Jesus na casa do fariseu. O fariseu pensou: se este homem for realmente um profeta, saberá quem é a que o toca. Disse-lhe Jesus: “Simão, tenho uma pergunta a lhe fazer”. “Faça-a, mestre”, respondeu. Disse Jesus: “certo credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhentos denários e o outro cinqüenta. Não tendo nenhum dos dois como pagar, perdoou a dívida a ambos. Qual deles o amará mais?”
- Suponho que aquele a quem mais perdoou. Replicou Jesus: “julgas bem.”
Ouvindo o som de Zé Miguel e Amadeu Cavalcante, cada um de nós levantou um cálice de vinho à Vitória de Cristo. Nesse momento lembrei do editor deste jornal, ex-seminarista e quase padre Douglas Lima, e da poesia O Dia da Criação, de Vinicius de Moraes com a qual brindamos nossos leitores e ele, neste dia de Páscoa.

O DIA DA CRIAÇÃO

Macho e fêmea os criou.
Gênesis 1,27

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.

Hoje é sábado, amanha é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios

Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

II

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há a comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado

III

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seriamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seriamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar os problemas das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

Wagner Gomes
wagnergomesadvocacia@uol.com.br
wg_ed.wagneradv@hotmail.com

quinta-feira, 2 de abril de 2009

“7 de Maio”


É madrugada de quarta...
Vivendo nas turbulências do destino...
Hoje ninguém sabe ao certo caminhar no equilíbrio de suas influências...
Servindo e sendo servido...
Vivendo nessa realidade cruel e mal distribuída...
É assim que vive-se diante as influências...
Os desejos propagam-se em materialismo e ferem o coração...
Os teus olhos refletem-lhe a interpretações que não lhe enxergam as suas decepções...
E eu sozinho e esquecido por esse mundo, viverei em minha vez...
Pensarei em como fazer minha vida...
Nas distâncias das cores que colorem as vibrações...
Existindo pessoas dizendo que ela oferece amor!
Existindo pessoas dizendo que ela ocasiona dor!
E somente quem vivê-la saberá responder...
O dia já encontra-se ao raiar do sol sobre nossos olhos...
E o sol cintilante simulará nossa doença...
Só teremos febre e dor de cabeça...
E nós estaremos sentindo frio...
E eu estarei pensando o que escreverei outra vez...
Precisando de algo para acobertar-me e aquecer-me para eu dormir longe de um prazer...
Já estando em 7 de Maio...
Doente e servindo aos estímulos de um solitário sofrimento...
E vivendo entre a vida e a morte...
Só existirá prazer, quem vivera a vida, sufocando a morte.

Marcos Gomes 07/05/2002.